segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

A vida borbulhante e participativa nas ruas medievais

Na Idade Média toda a atividade acontecia na rua, à luz do dia. Todos podiam ver como o produto era fabricado, como o serviço era feito, e encomendar as coisas como cada um queria.
Na Idade Média toda a atividade acontecia na rua, à luz do dia.
Todos podiam ver como o produto era fabricado,
como o serviço era feito, e encomendar as coisas como cada um queria.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








O ambiente da rua é muito importante para o homem da Idade Média, pois vive-se muito na rua, o que é mesmo uma verificação assaz curiosa de fazer.

Até então, e de acordo com o uso corrente na Antiguidade, as casas eram iluminadas por dentro, apresentando poucas ou nenhuma abertura para o exterior.

Na Idade Média elas abrem-se para a rua. Isso é o índice de uma autêntica revolução dos costumes, pois a rua torna-se um elemento da vida quotidiana, tal como o haviam sido, no passado, a ágora ou o gineceu.

As pessoas gostam de sair. Todos os lojistas têm um toldo que montam todas as manhãs, e expõem os seus artigos ao ar livre.

A iluminação foi, antes do século da eletricidade, uma das grandes dificuldades da existência, e a Idade Média, amante de luz, resolvia a questão tirando o maior proveito da luz do dia.

Um mercador de tecidos que arrastava os clientes até ao fundo da loja era mal considerado, pois se seus artigos não contivessem algum defeito, ele não teria receio de expô-los em plena rua, tal como o faziam todos os outros.

O que o cliente quer é poder acotovelar-se sob o toldo e examinar à vontade, em pleno dia, as peças entre as quais fará recair a sua escolha com os conselhos do seu alfaiate, que o mais das vezes o acompanha para isso.

O cordoeiro, o barbeiro, mesmo o tecelão, trabalham na rua ou virados para ela.

O cambista instala as suas mesas sobre cavaletes, no exterior, e tudo que a autoridade municipal pode fazer, para evitar estorvos, é limitar a uma escala fixa a dimensão dessas mesas.

Assim, as ruas são de uma animação extraordinária. Cada quarteirão possui a sua fisionomia própria, pois em geral os corpos de ofício estão agrupados.

Isto é assinalado pelos nomes das ruas.

Ilustração da vida nas ruas medievais. O pregoeiro le as notícias ou normas,
e até o bandido comum purga sua pena aos olhos de todos (centro)
Em Paris, a Rua dos Cuteleiros (Rue de la Coutellerie), o Cais dos Ourives (Quai des Orfèvres) e o dos Peleiros (de la Mégisserie) onde se situavam os curtidores, a Rua dos Tanoeiros (Rue des Tonneliers) — todos são nomes que indicam bem os corpos de ofício que nelas se encontravam reunidos.

Os livreiros encontram-se quase todos agrupados na Rue Saint-Jacques, o quarteirão Saint-Honoré é o dos açougueiros.

Mas são todos muito vivos, porque as lojas, sendo ao mesmo tempo oficinas e locais de venda, transbordam e assaltam a rua, num misto de souk tunisino e Ponte-Vecchio de Florença.

Na Paris atual, só os cais da margem esquerda, com as tendas dos alfarrabistas e o seu público de ociosos e de clientes assíduos, conseguem dar uma ideia desses tempos.

Haveria que acrescentar a isto o “fundo sonoro”, muito diferente do que acontece hoje em dia.

A serra dos carpinteiros, o martelo dos ferreiros, os apelos dos marinheiros que rebocam ao longo do rio as barcas carregadas de víveres, os pregões dos mercadores, tudo isso substituído hoje pelas buzinas dos táxis e a barulheira dos automóveis.

Na Idade Média tudo se “apregoa”: novidades do dia, decisões de polícia ou de justiça, levantamentos de impostos, leilões ao ar livre na praça pública, mercadorias para venda.

A publicidade, em vez de se expor nas paredes em cartazes coloridos, é “falada”, como na rádio dos nossos dias.

Muitas vezes as autoridades locais vêem-se mesmo obrigadas a reprimir os abusos e impedir os lojistas de “darem vozes” de modo exagerado.

O tipo mais popular deste gênero é o pregoeiro das tabernas.

A instituição dos pregoeiros públicos ainda se perpetua em muitas prefeituras da Inglaterra
A instituição dos pregoeiros públicos
ainda se perpetua em muitas prefeituras da Inglaterra
Todo taberneiro manda um personagem de garganta poderosa apregoar o seu vinho a quem se senta diante de uma mesa, e preside à degustação, enquanto os passantes aliciados mandam vir um copázio.

Para os que não têm tempo de entrar na taberna, isso faz as vezes do “balcão” dos cafés parisienses. No Jeu de Saint-Nicolas, esse pregoeiro desempenha um papel importante:

Céans fait bon dîner, céans
Ci a chaud pain et chaud hareng
Et vin d'Auxerre à plein tonnel.

Quer dizer:

Aqui há bom jantar,
Aqui bom pão e arenque quente
E vinho de Auxerre a escorrer da pipa.

Ao correio do rei, que se detém um instante, ele serve um copo, dizendo:

Tiens, ci te montera au chef [à la tête]
Bois bien, le meilleur est au fond!

Vem, que te subirá à cabeça
Bebe bem, o melhor está no fundo!

Há que imaginar isto nessas ruas medievais, das quais os antigos bairros de Rouen ou de Lisieux dão ainda ideia, com as suas casas de vigas aparentes e envasamentos esculpidos.

A elas se prendiam outrora cartazes em ferro forjado, de onde surgia de repente a poderosa arcatura de um pórtico de igreja, e levantando-se a cabeça avistava-se lá no alto a flecha, elevada como um mastro por entre os telhados.

Pois nessa época, longe de estarem isoladas, esmagadas pelos grandes espaços vazios que nos habituamos a criar em torno delas, as igrejas formam corpo com as habitações que se amontoam junto a elas, parecendo querer situar-se mesmo por baixo do seu campanário.

Nas ruas abundavam símbolos que anunciavam lojas ou serviços. Há muitas ainda na Alemanha, como este sapateiro de Mittenwald
Nas ruas abundavam símbolos que anunciavam lojas ou serviços.
Há muitas ainda na Alemanha, como este sapateiro de Mittenwald
Ainda se pode notar isto atrás de Saint-Germain-des-Prés. A própria disposição exterior traduz a familiaridade em que vivem então o povo e a sua igreja.

As nossas catedrais góticas, muito diferentes nisto dos templos da Antiguidade, são concebidas para serem vistas deste modo, em perspectiva vertical, e assim adquirem o seu autêntico valor.

Por ocasião da reconstrução da catedral de Reims, houve quem se espantasse de encontrar, por entre as joias da nossa escultura medieval, estátuas de traços deformados, de uma fealdade espantosa.

Mas bastou voltar a pô-las nos nichos, quase no topo da construção, para compreender que tinham sido esculpidas de tal modo que, para o espectador que olhava para elas de baixo, os traços propositadamente exagerados conservavam toda a sua expressão, adquirindo uma beleza singular.

Era o fruto de um cálculo de geômetra, tanto como de um trabalho de artista.

Permitem reconstituir bastante fielmente o aspecto de uma cidade medieval alguns conjuntos como Salers em Auvergne, Peille perto de Nice, com as suas numerosas arcadas, portões largos, janelas alinhadas nos andares das casas, pontes cobertas lançadas por sobre a rua, ligando entre si duas “ilhas”, isto é, dois grupos de habitações.

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)



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